segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Crescimento

«When we blindly adopt a religion, a political system, a literary dogma, we become automatons. We cease to grow.»
Annais Ninn

domingo, 23 de outubro de 2011

Diálogo

Eis o que o espírito que pairava sobre a água do aquário perguntou ao aprendiz de filósofo, Já pensaste se a morte será a mesma para todos os seres vivos, sejam eles animais, incluindo o ser humano, ou vegetais, incluindo a erva rasteira que se pisa e a sequoiadendron giganteum com os seus cem metros de altura, será a mesma a morte que mata um homem que sabe que vai morrer, e um cavalo que nunca o saberá. E tornou a perguntar, Em que momento morreu o bicho-da-seda depois de se ter fechado no casulo e posto a tranca à porta, como foi possível ter nascido a vida de uma morte da outra, a vida da borboleta da morte da lagarta e serem o mesmo diferentemente, ou não morreu o bicho-da-seda porque está vivo na borboleta. O aprendiz de filósofo respondeu, O bicho-da-seda não morreu, a borboleta é que morrerá, depois de desovar, Já o sabia eu antes que tu tivesses nascido, disse o espírito que paira sobre as águas do aquário, o bicho-da-seda não morreu, dentro do casulo não ficou nenhum cadáver depois de a borboleta ter saído, tu o disseste, um nasceu da morte do outro, Chama-se metamorfose, toda a gente sabe de que se trata, disse condescendente o aprendiz de filósofo, Aí está uma palavra que soa bem, cheia de promessas e certezas, dizes metamorfose e segues adiante, parece que não vês que as palavras são rótulos que se pegam às cousas, não são as cousas, nunca saberás como são as cousas, nem sequer que nomes são na realidade os seus, porque os nomes que lhes deste não são mais do que isso, os nomes que lhes deste, Qual de nós dois é filósofo, Nem eu neu tu, tu não passas de um aprendiz de filosofia, e eu apenas sou o espírito que paira sobre a água do aquario, Falávamos da morte, Não da morte, das mortes perguntei por que razão não estão morrendo os seres humanos, e os outros animais, sim, por que razão a não-morte de uns não é a não-morte de outros, quando a este peixinho vermelho se lhe acabar a vida, e tenho que avisar-te que não tardará muito se não lhe mudares a água, serás tu capaz de reconhecer na morte dele aquela outra morte de que agora pareces estar a salvo, ignorando porquê, Antes, no tempo em que se morria, nas poucas vezes que me encontrei diante de pessoas que haviam falecido, nunca imaginei que a morte delas fosse a mesma de que eu um dia viria a morrer, Porque cada um de vós tem a sua própria morte, transporta-a consigo num lugar secreto desde que nasceu, ela pertence-te, tu pertences-lhe, E os animais, e os vegetais, Suponho que com eles se passará o mesmo, Cada qual com a sua morte, Assim é, Então as mortes são muitas, tantas como os seres vivos que existiram, existem e existirão, De certo modo, sim, Estás a contradizer-te, exclamou o aprendiz de filósofo, As mortes de cada um são mortes por assim dizer de vida limitada, subalternas, morrem com aquele a quem mataram, mas acima delas haverá outra morte maior, aquela que se ocupa do conjunto dos seres humanos desde o alvorecer da espécie, Há portanto uma hierarquia, Suponho que sim, E para os animais, desde o mais elementar protozoário à baleia azul, Também, E para os vegetais, deste o bacteriófito à sequóia gigante, esta citada antes em latim por causa do tamanho, Tanto quanto creio saber, o mesmo se passa com todos eles, Isto é, cada um com a sua morte própria, impessoal e intransmissível, Sim, E depois mais duas mortes gerais, uma para cada reino da natureza, Exacto, E acaba-se aí a distribuição hierárquica das competências delegadas por tânatos, perguntou o aprendiz de filósofo, Até onde a minha imaginação consegue chegar, ainda vejo uma outra morte, a última, a suprema, Qual, Aquela que haverá de destruir o universo, essa que realmente merece o nome de morte, embora quando isso suceder já não se encontre ninguém aí para pronunciá-lo, o resto de que temos estado a falar não passa de pormenores ínfimos, de insignificâncias, Portanto, a morte não é única, concluiu desnecessariamente o aprendiz de filósofo, É o que já estou cansado de te explicar, Quer dizer, uma morte, aquela que era nossa, suspendeu a actividade, as outras, as dos animais e dos vegetais, continuam a operar, são independentes, cada uma trabalhando no seu sector, Já estás convencido, Sim, Vai então e anuncia-o a toda a gente, disse o espírito que pairava sobre a água do aquário. E foi assim que a polémica começou.

José Saramago, in As intermitências da morte

domingo, 11 de setembro de 2011

Pessoas imortais, uma Pessoa: o Pessoa

Fotografia tirada na Casa Fernando Pessoa


Há Homens que não são feitos da mesma matéria que todos os outros. Não é de carne que são revestidos e o que lhes corre nas veias não é sangue. Os olhos são como balas capazes de perfurar todas as coisas, ultrapassam o espectro visível. Uma sensibilidade arrepiante.
Caminham dentre a multidão, moribundos numa orquestra nem sempre audível a quem os fita. Nutrem-se da vida que por eles passa, desfilando nas ruas solitariamente.
Diz-se que todo o Homem é mortal. Contudo, olho o fato sem forma com que me deparei e não me fica vazio. Ao invés, reside plenitude. Interrogo-me se haverão pessoas ditas vivas mais vivas do que Pessoa? Conseguem haver mortos mais vivos que desafiam leis, são Homens do não tempo. A sua casa são todos os lugares e a vida que tão delicadamente acontece em "agoras".

Ninguém me dirá quem sou, nem saberá quem fui

Livro do Desassossego, Fernando Pessoa

domingo, 28 de agosto de 2011

A indiferença silenciosa, grave, quase benévola, é a manifestação legítima da morte de toda a crença.

Alexandre Herculano

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Como se morre de velhice

Como se morre de velhice
ou de acidente ou de doença,
morro, Senhor, de indiferença.

Da indiferença deste mundo
onde o que se sente e se pensa
não tem eco, na ausência imensa.

Na ausência, areia movediça
onde se escreve igual sentença
para o que é vencido e o que vença.

Salva-me, Senhor, do horizonte
sem estímulo ou recompensa
onde o amor equivale à ofensa.

De boca amarga e de alma triste
sinto a minha própria presença
num céu de loucura suspensa.

(Já não se morre de velhice
nem de acidente nem de doença,
mas, Senhor, só de indiferença.)

Cecília Meireles

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

O sono

O sono que desce sobre mim,
O sono mental que desce fisicamente sobre mim,
O sono universal que desce individualmente sobre mim -
Esse sono
Parecerá aos outros o sono de dormir,
O sono da vontade de dormir,
O sono de ter sono.

Mas é mais, mais de dentro, mais de cima:
É o sono da soma de todas as desilusões,
É o sono da síntese de todas as desesperanças,
É o sono de haver mundo comigo lá dentro
Sem que eu houvesse contribuído em nada para isso.

O sono que desce sobre mim
É contudo como todos os sonos.
O cansaço tem ao menos brandura,
O abatimento tem ao menos sossego,
A rendição é ao menos o fim do esforço,
O fim é ao menos o já não haver que esperar.

Há um som de abrir uma janela,
Viro indiferente a cabeça para a esquerda
Por sobre o ombro que a sente,
Olho pela janela entreaberta:
A rapariga do segundo andar de defronte
Debruça-se com os olhos azuis à procura de alguém.
De quem?,
Pergunta a minha indiferença.
E tudo isso é sono.

Meu Deus, tanto sono!...

Álvaro de Campos

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Conveniencias de no usar de los ojos, de los oídos y de la lengua

Oír, ver y calar, remedio fuera
En tiempo que la vista y el oído
Y la lengua pudieran ser sentido
Y no delito que ofender pudiera.

Hoy, sordos de los remedios con la cera,
Golfo navegaré que (encanecido
De huesos, no de espumas) con bramido
Sepulta a quién oyó voz lisonjera.

Sin ser oído y sin oír, ociosos
Ojos y orejas, viviré olvidado
Del ceño de los hombres poderosos.

Si es deito saber quien ha pecado,
Los vicios escudriñen los curiosos:
Y viva yo ignorante y ignorado.

Francisco de Quevedo